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No Hospício

“A palavra não deve ser para a alma senão um sinal misterioso, muito discreto, muito austero, muito augusto, só perceptível à visão dos espíritos. Parece mesmo uma deplorável extravagância da nossa natureza incompleta este capricho de reduzir a medida e a cadência as grandes emoções a que a alma se exalça em certos momentos.” (Rocha Pombo)

domingo, 27 de dezembro de 2009

Uma vela para Dario: A invisibilidade do ser humano (Ensaio)

Saiu na Folha São Paulo um artigo, de Salvador Nogueira, com o seguinte título: "Japoneses Criam Sistema de 'Invisibilidade'". Trata-se de uma camuflagem, uma técnica ilusionista e serve como estratégia militar, também. Por exemplo, se ligarmos um projetor, transmitindo a imagem de uma parede, igual a que estiver atrás da pessoa, e apontar um espelho, refletindo essa projeção diretamente no indivíduo, a transparência é alcançada com sucesso. Uma fácil e eficaz ilusão óptica. Os camaradas do outro lado do mundo se divertem bastante com essa nova brincadeira que a física lhes proporcionou. Mas em muitos lugares, como no Brasil, alguns cidadãos não precisam de nenhum desses instrumentos para desaparecer aos olhos dos outros. Satisfaz, apenas, estar na rua e/ou necessitar de ajuda.
Caminhando pela Rua dos Andradas nos deparamos com vários “anônimos”, invisíveis aos olhos do público que passa pela rua, caminhando com passos largos e rápidos, não há tempo para vê-los. Trancam até a respiração, como se respirar o mesmo ar pudesse fazê-los ter o mesmo destino desses seres.
O fato é que só enxergamos a posição social dos outros, a importância que têm no mundo financeiro.
Vivemos numa sociedade capitalista, que tem medo, ou nojo, de se envolver com os que pertencem a classes carentes. Ninguém se importa se alguém desmaiou no meio da rua por fome ou sede. Ou se alguém perdeu a carteira e não tem dinheiro para uma condução de volta para casa. Muitas pessoas ainda mentem, quando um amigo, ou colega, pergunta se tem um real para emprestar, pois necessita telefonar. Você permitiria que sua filha se casasse com um menino da FEBEM? Acho que não.
Lembro-me de uma vez, em que caminhava por essa mesma rua, no centro de Porto Alegre, com minha babá. Eu tinha apenas oito anos e não entendia as “regras da invisibilidade”, ainda. Analisei um velho, imundo e aleijado, salivando pelo prato de comida do segurança da loja ao lado. Puxei o braço da babá e disse “coitadinho”, apontado para o mendigo. Ela, mais que rapidamente, virou meu rosto para o outro lado e disse furiosa: não olha, porque é feio!
O que é feio? Um ser humano, com alma, assim como nós, que chora, ri e sente, morrendo de fome e frio, nos mais rigorosos invernos Gaúchos? Ninguém se importa em comer os mais deliciosos doces e tomar aquelas grandes taças de capuccino e shantily, enquanto algumas crianças, sujas e piolhentas, vendem adesivos em troca de “moedinhas”. Nesses casos, muitas pessoas, até, se tornam surdas, fingem que não ouviram ou que não prestaram a atenção aos pequenos anônimos. A fusão brasileira é preconceituosa, discriminante e egocêntrica. O valor da pessoa está no que ela pode lhe dar, e não o que ela pode ser.
É exatamente este o tema do conto Uma Vela para Dario, de Dalton Trevisan, que ironiza e nos desperta para todo esse problema social: a invisibilidade do ser humano. Dario, que vem de outra cidade, cai doente no meio da rua, os moradores levam-lhe pertences e os documentos, no decorrer da narrativa, deixam-no falecer sem ajuda ou identificação. A ironia e a sátira é muito presente nas cenas. Tentam levá-lo ao hospital de taxi, porém o taxista indaga quem pagará a corrida e ninguém se manifesta, devolvendo o homem doente ao seu lugar. O mais importante é quem pagará a corrida do taxi e não se Dario sobreviverá. Infelizmente este conto não é ficção, mas o retrato de uma sociedade interesseira. “Apenas um homem morto e a multidão se espalhou, as mesas do café ficaram vazias” - Assim fecha-se a narrativa.
É uma crítica social aos costumes das pessoas, que vêem alguém e não se importam com o que esse alguém sente, como se isso fosse algo irreal, como se ninguém pudesse sentir a mesma dor, ninguém DEVE sentir isso. Há, até, algumas superstições bobas, que vêm dos mais antigos povos, onde tudo que é ruim “não presta”, atrai má sorte. Não podemos ver um morto, porque morreremos mais cedo, não podemos comer enquanto caminhamos, “pois quem come de pé não alcança o que quer” , não podemos olhar para um mendigo porque acabamos igual a ele. "Deus castiga isso, castiga aquilo!" Eu poderia passar o dia inteiro citando as mais ridículas idéias e medos do nosso povo. Os órfãos e necessitados, doentes e aleijados de rua são meros bichos transparentes e agourentos para a fusão social. Não podemos olhá-los! É a sociedade invisível do nosso país.
By Míriam Coelho